quarta-feira, 7 de maio de 2014

Pão Rústico Francês (Pain de Campagne)











Pão de Campanha, Pão Campestre ou "Pain de Campagne"? Há controvérsias, então resolvi manter o nome original em Francês, Pain de Campagne, e chamá-lo de maneira genérica como Pão Rústico Francês. No Brasil este tipo de pão é mais conhecido como "Pão de Campanha", mas o termo "campanha" não diz muito sobre a forma como ele é feito. Parece uma tradução literal do nome "campagne" que, na verdade, significa "campestre" em Francês, mas concordo que "Pão Campestre" não soaria muito bem! Já vi em um livro a associação do nome ao fato de os soldados franceses receberem pães deste tipo, os quais eram dados às suas famílias, antes de partirem para suas campanhas de guerra. Porém, a verdade é que este tipo de pão é uma herança do estilo campestre de se fazer pães na França. As massas eram desenvolvidas com fermentos naturais (pâte fermentée) e assadas em fornos comunitários naqueles dias em que os fornos eram abertos e disponibilizados para uso público. Como a frequência dos dias de assamento não era alta, as famílias adotaram pães maiores para que os mesmos pudessem alimentá-las até o próximo dia de assamento. A forma circular é possivelmente devido a massas mais delicadas e de menor sustentação resultantes do processo natural de fermentação e do baixo teor de proteína das farinhas da época. 

A importância do pão como fonte de nutrientes, especialmente carboidratos e proteínas, para alimentação das famílias, era grande desde a Idade Média na Europa, especialmente em períodos de crises e de guerras. Enquanto pensava nesta postagem, me lembrei de dois filmes recentes que retratam bem o papel do pão como alimento e até mesmo como instrumento de poder. Um dos filmes é o musical "Os Miseráveis" (do clássico Les Miserables de Victor Hugo). Quem assistiu o filme, viu o musical ou leu o livro (de mil e tantas páginas!) vai se lembrar da razão pela qual Jean Valjean foi preso pela primeira vez: ele roubou um pão para alimentar um sobrinho doente e a família faminta. No diálogo com Javert quando ganha a liberdade no início do filme ele lembra a razão de ter ficado preso por cinco anos: "I stole a loaf of bread. My sister's child was close to death, and we were starving... ".  Já a trilogia "Jogos Vorazes" (The Hunger Games de Suzanne Collins) tem o pão como elemento simbólico também para expressão do poder e da segregação social. O tipo de pão, seu formato e a abundância com que estava disponível determinava a classe social das famílias e das comunidades. Em várias passagens do primeiro filme da série o pão aparece como forma de representação dos vários níveis de poder entre as comunidades da nação Panem. Uma cena marcante no filme, que mostra a diferença social entre Katniss, a mocinha do filme, e Peeta (nome soa como pitta bread, pão árabe), o filho do padeiro, ocorre quando Katniss, faminta, sai à procura de alimento e recebe um pão jogado por Peeta, que o deixa queimar propositalmente para poder jogá-lo fora e atirá-lo a Katniss. Em outra cena interessante no início do filme, o namorado de Katniss, Gail, que não tem nome de pão(!), divide com ela um pão que ele havia trocado por um animal recém caçado. Por que eu me lembrei disto tudo? Porque os pães que aparecem nestes filmes são pães como o Pain de Campagne, rústicos, às vezes circulares e porque também eles aparecem como elemento básico de alimentação das famílias e comunidades nestes filmes. 

A fabricação destes pães utilizava fermentos "selvagens" (wild yeasts), ou seja, fermentos capturados no ar ou nas cascas dos grãos de trigo, os quais eram  mantidos ativos na forma de massas pré-fermentadas por meio de alimentação regular e aeração. A massa pré-fermentada (pâte fermentée) era então utilizada como ingrediente básico na mistura dos novos pães e a massa remanescente renovada. Este processo é ainda utilizado nos dias de hoje em padarias artesanais (e domésticas!) na fabricação de Pain de Campagne e de vários outros tipos de pães ácidos (sourdoughs). Os fermentos naturais podem durar anos e até décadas sob refrigeração quando alimentados regularmente. Mesmo quando ficam dormentes por períodos maiores podem ser reativados. A relação dos padeiros artesanais com estes fermentos é tão próxima que alguns costumam até mesmo dar nomes aos seus fermentos! A  sua ação lenta e gradual permite o desenvolvimento do glúten e imprime sabor característico à massa, além de liberar odores únicos e exclusivos, que caracterizam o pão e a padaria artesanal. No Brasil há pouquíssimas padarias que fabricam pães artesanais  desta forma, já que a grande maioria delas compra a mistura já pronta para ser hidratada e assada.

Para facilitar a execução, simplifiquei esta receita e eliminei a etapa de desenvolvimento do pré-fermento, substituindo-a por uma autólise de uma hora, o que permite que o pão seja assado no mesmo dia da mistura. Com esta modificação, a receita utiliza o fermento instantâneo seco e não mais o fermento natural usado na receita original de Pain de Campagne. Através da etapa de autólise anterior à fermentação, temos uma pré-mistura, e não mais um pré-fermento, por meio da qual será formado o glúten. A execução da autólise é muito simples, pois ela envolve simplesmente a mistura de toda a farinha com toda a água da receita. Esta mistura é deixada descansando por uma hora, quando o glúten é formado pela quebra das moléculas do carboidrato da farinha pela água. A água faz todo o serviço! A elasticidade dada à massa pela formação do glúten permite a captura dos gases produzidos pelo fermento e a expansão da massa, deixando-a mais leve e delicada. Após a autólise de uma hora os demais ingredientes podem ser adicionados e a massa deixada a fermentar.  

Mantive nesta receita o percentual de 63% de hidratação para que a massa tivesse consistência suficiente para ser manipulada e para aceitar os cortes (pestanas) superiores antes da fermentação. Para detalhes sobre como calcular o percentual do padeiro, publiquei anteriormente uma postagem somente sobre este assunto. No mais, o restante da receita envolve simplesmente a mistura e fermentação, etapas que serão detalhada a seguir. 
Ingredientes:

IngredientePP%QuantidadeMedida aproximada
Farinha de trigo80 %640 gramas4 xícaras e uma colher de sopa cheias
Farinha integral de trigo20 %160 gramas1 xícara bem cheia
Água63 %504 gramas500 ml
Fermento biológico instantâneo seco1 %8 gramas2 colheres de sobremesa rasas
Sal2,5 %20 gramas3 colheres de chá
Melhorador de farinha (opcional)1,25 %10 gramas1 colher de sobremesa bem cheia

Execução:

Inicialmente misture somente as farinhas e a água e deixe descansar coberta por um pano úmido por uma hora. Durante este período ocorrerá a autólise. Não é necessário amassar, basta misturar até que a farinha incorpore a água, como na foto abaixo. Cobrir com um pano úmido e deixar descansar por uma hora.


Após uma hora a mistura deverá ter ganho elasticidade devido à formação do glúten, como mostrado na foto abaixo.


Neste momento, após a autólise, os ingredientes restantes da receita devem ser adicionados e a massa sovada até que ela fique homogênea. O tempo de sova depende do método, mas normalmente será em torno de 10 minutos quando sovada à mão. Deixar descansar coberta por um pano úmido até que dobre de tamanho.



Após dobrar de tamanho, retirar o gás da massa pressionando-a suavemente sobre a bancada, sem sovar novamente, dividir em três pedaços iguais e modelar na forma de bolas (bolear na linguagem dos padeiros!) como na foto abaixo.


Cobrir três vasilhas de cozinha de base circular com panos de prato e esfarinhar, preferencialmete com semolina que é uma farinha mais dura e que levará mais tempo para ser aborvida e criará uma camada de proteção externa á massa. Se não tiver semolina, use farinha integral ou fubá (de canjica), como na foto abaixo. A utilização das vasilhas de base circular serve para que a massa mantenha a forma durante a fermentação sem ficar achatada demais na base, o que pode ocorrer com as massas de maior hidratação. Levar as bolas para as vasilhas com as dobras viradas para cima, pois elas serão viradas novamente antes de ir para o forno, cobrir com um pano ligeiramente úmido e deixar dobrar de volume novamente.


Após dobrar de volume as massas deverão ser transferidas para as formas em que serão assadas e levadas ao forno pré-aquecido a 230 graus Celsius por 30 minutos. Para tirar a massa da vasilha ela deve ser virada sobre a mão ou diretamente sobre o tabuleiro ou pá que a levará ao forno. O processo é simples, basta apoiar a massa por cima com uma das mãos e girar a vasilha com a outra. Ao retirar a vasilha e o pano a massa ficará sobre a mão de apoio e poderá ser transferida para a vasilha ou pá, como na foto abaixo. Caso a massa tenha uma hidratação maior ela pode "agarrar" no pano ou na mão e ficar mais difícil de manipular neste ponto. Por esta razão mantive uma hidratação menor, de 63%, nesta receita. Neste ponto é só levar para o forno e assar. A forma de assar dependerá dos utensilhos e fornos de cada um. O método mais simples e que funciona muito bem é simplesmente levar as massas diretamente para o tabuleiro e então ao forno. Esta é a forma convencional a que todos têm acesso e que funciona muito bem. Não há necessidade de ter a pá nem a panela de ferro como nas fotos que se seguem. Eles são só parte da minha diversão para tentar melhorar o processo, mas o assamento com tabuleiro no forno a gás funciona muito bem (230 graus Celsius por 25 a 30 minutos).


Eu assei os pães desta postagem de uma forma diferente, sendo um deles na panela de ferro (dutch oven) em um forno a gás e os outros dois sobre uma pedra em um forno elétrico. Não vou detalhar muito estes métodos aqui, pois acho que eles merecem uma postagem à parte, especialmente o método da panela, mas se alguém quiser utilizá-los, seguem alguns detalhes:
  • Panela de ferro (Dutch oven): Aquecer a panela de ferro semi-aberta no forno a gás, bandeja do meio, à temperatura máxima por meia hora. Retirar a panela do forno, virar a massa da vasilha na mão, "jogar" na panela, fechar e deixar assar por 20 minutos, abrir o forno, retirar a tampa da panela e deixar corar por mais 5 a 10 minutos. No pão da foto eu na verdade transferi da vasilha para a tábua primeiro, fiz os cortes e então retirei a panela do forno para receber a massa já cortada. O aspecto final é o que aparece na foto abaixo.
  • Forno elétrico.  Utilizei aqui uma pedra de pizza sobre a qual os pães foram assados. Basta manter a temperatura da resistência inferior do forno bem mais alta do que a superior visando a manter a temperatura do forno e da pedra sem queimar a parte superior do pão. Quando a massa começar a ganhar cor, desligar a resistência inferior e aumentar a superior para para que o pão ganhe cor. As temperaturas vão depender de cada forno, mas para se ter uma ideia, no meu forno utilizei 300 graus Celsius na resistência inferior e 150 graus na superior no início da cocção. Quando a inferior foi desligada, elevei a superior para 250 graus, mas sempre monitorando a cor do pão para não queimar.


E o resultado é este:






15 comentários:

  1. Adorei o texto e a receita. Muito bem detalhados. Obrigada pela partilha

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  2. Parabéns pelo trabalho em todo o texto e explicações da receita!! Obrigada!!

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  3. Obrigado Rogério, mas uma dúvida, se eu for usar o levain, qual a quantidade? Preciso fazer um pré fermento correto? Essas medidas que não tenho.

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  4. Pessoal gostaria muito de obter a receita de um pão comumente usado em sanduíches nas lanchonetes nos EEUU. Esse pão é usado depois de ficar pronto na geladeira onde é conservado. Retiram ele para utilizar depois de descongelar. Fica muito crocante é delicioso. Me falaram que é pão italiano mas não sei ao certo. Usam em sanduíches frios e quentes. Abraços.

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  5. Olá
    Nessa receita, se usarmos o levain, como ficam os percentuais?

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  6. Que show de receita e de explicação. .
    Amei!!!
    Obrigada.

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Pro levain deve-se inicialmente fazer a conversão pra fermento biológico, que e 3 vezes menos potente que o fermento seco.
      Dai, se fossem utilizar o fermento biológico, seriam 30 gramas.
      Já pro levain, ele é normalmente 10 vezes menos potente que o fermento biológico fresco (em se tratando em tempo de crescimento).
      A quantidade de levain será de 300 gramas.
      Só deve ficar atento ao percentual de água em seu fermento, e não utilizar toda a água que consta na receita.

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  8. Cara, foi a única explicação completa de toda net. Muito obrigado.

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  9. A água usada é filtrada, da torneira ou mineral? Em todas as receitas que já vi nuca falam da água, mas o tipo de água influi? Aguardo resposta

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  10. A água usada é filtrada, da torneira ou mineral? Em todas as receitas que já vi nunca falam da água, mas o tipo de água influi? Aguardo resposta. Sua receita foi muito bem explicada,

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  11. A água usada é filtrada, da torneira ou mineral? Em todas as receitas que já vi nuca falam da água, mas o tipo de água influi? Aguardo resposta

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  12. Olá!! Adorei todo o texto!!! Muito bem explicado e com muitos detalhes!!! Obrigada por compartilhar seus conhecimentos!!!🙏🙌 Farei hj mesmo, depois contarei o resultado!!!🥰

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