terça-feira, 27 de maio de 2014

Pão Pelado, um miolo sem casca.




Não é fácil fazer uma casca de pão que seja crocante e que contraste em textura com o miolo. Equilibrar interior e exterior do pão é um dos maiores desafios da panificação artesanal doméstica, a arte da panificação está neste equilíbrio. Para produzir uma casca crocante e para que o miolo se desenvolva faltam ao padeiro doméstico ingredientes, técnicas e, acima de tudo, o forno próprio através do qual seja possível controlar com precisão temperatura e umidade durante o assamento. Para atingir um nível mais alto de qualidade é preciso dominar e controlar cada etapa. O padeiro doméstico, por não ter acesso aos processos de produção profissionais, ainda usa métodos artesanais na produção de seus pães.  Boa parte do seu esforço é voltado para a produção de uma casca crocante e de coloração atraente. Para fazer pães de qualidade como aqueles das padarias artesanais e, especialmente, para produzir uma casca diferenciada, o padeiro doméstico lança mão de uma porção de artifícios, como assar o pão dentro de uma panela de ferro (dutch oven), produzir fermentos naturais, utilizar  técnicas de autólise e de pré-fermentação e por aí vai. E depois de todo este esforço tem sempre alguém que descarta a casca e come somente o miolo. Pior é quando a pessoa resolve fazer um elogio e fala "hummm que delícia, adorei o miolo"! Não que o miolo não faça parte do pão e que deva ele ser descartado, mas a maior parte do esforço na produção de pães é dedicada à casca, afinal é ela que dá aparência ao pão por estar exposta às reações externas que ocorrem a altas temperaturas dentro do forno. Por outro lado, o miolo transfere leveza, volume, sabor e sustentação ao produto final. Casca e miolo se complementam, há uma verdadeira troca entre eles e é difícil imaginar um sem o outro. Quem busca o miolo vai atrás de sua leveza e umidade que na verdade somente foram obtidas devido à formação e proteção da casca. É uma troca, a massa se expande nos momentos iniciais do assamento até que a casca se forme e comece a endurecer envolvendo o miolo, abraçando-o e protegendo-o da exposição externa à atmosfera do forno. Dentro ficam a leveza e a umidade, fora ficam  a crocância e a beleza do pão. Em alguns dias a umidade entre interior e exterior se iguala e já não dá mais para diferenciar entre o sabor da casca e do miolo, beleza e romantismo em um simples pão. Crust and Crumb: Master Formulas for Serious Bread Bakers, de Peter Reinhart, um dos livros clássicos do padeiro artesanal, descreve muito bem os processos de formação da casca (Crust) e do miolo (Crumb).

Com toda esta troca e interação entre miolo e casca será possível de alguma forma separá-los? É possível a existência de um sem o outro? Para responder a esta pergunta dei-me ao desafio oposto, o de produzir o inusitado, um miolo sem casca, um pão que seja ele mesmo o próprio miolo. Isto foi possível por meio do ajuste dos percentuais dos ingredientes e da utilização de uma forma com tampa como a da foto abaixo.
   

A proporção dos ingredientes foi ajustada para o tamanho da forma, especialmente a hidratação da massa, para que uma camada fina de vapor se formasse junto às suas paredes, retardando  a formação da casca. Uma vez ajustadas as proporções de cada ingrediente, deve-se evitar apenas que o tempo de assamento seja muito longo para que a casca não se forme. O pão desta receita foi assado a 200 graus Celsius por um tempo de 25 minutos. A camada de vapor que se forma durante este tempo é suficiente para diminuir o contato da massa com as paredes da forma, retardando assim a formação da casca. Se a temperatura e o tempo de assamento forem maiores haverá maior perda de vapor, já que a forma não é perfeitamente selada, e uma casca fina aparecerá. Sem a casca, este pão é muito utilizado no Brasil para fazer sanduíche em camadas com recheios variados e usualmente algum tipo de cobertura.

Quando tem a casca, este tipo de pão de forma é conhecido como Pullman Loaf  nos Estados Unidos, como Tin Bread (Pão de Forma!) na Inglaterra e como Pain Anglaise, na França. Prático, com forma quadrada que facilita o seu armazenamento e transporte quando produzido em escala industrial, tem boa durabilidade e pode ser guardado até na geladeira por um tempo maior sem perda de qualidade.

Depois de produzir um miolo sem casca, me perguntei se seria possível haver uma casca sem miolo. A resposta que encontrei é "sim", a casca sobrevive sem o miolo em alguns pães chatos orientais como o Chapatis (Indiano) e o Pão Sírio (Pitta Bread). Nestes a casca se forma sem miolo através da expansão do ar em seu interior.

Ingredientes:

Para o tamanho da forma, utilizei 500 gramas de farinha, dos quais 400 gramas (80%) foram de farinha de trigo branca e 100 gramas de farinha de trigo integral (20%). Para entender como os percentuais são calculados, recomendo a leitura da postagem anterior "O Percentual do Padeiro". A receita leva também fécula de batata, leite em pó, manteiga e um percentual pequeno de açucar, como listado no quadro abaixo.

IngredientePP%QuantidadeMedida aproximada (*)
Farinha de trigo80 %400 gramas4 xícaras mal medidas
Farinha de trigo integral20 %100 gramas1 xícara mal medida
Água75 %375 gramas375 ml
Manteiga derretida5 %25 gramas2 colheres de sobremesa
Sal2,5 %12,5 gramas 2 colheres de chá
Açucar2,5 %12,5 gramas2 colheres de sobremesa bem cheias
Fécula de batata7,5 %37,5 gramas3 colheres de sobremesa bem cheias
Fermento biológico instantâneo seco1,0 %5 gramas2 colheres de sobremesa mal  medidas
(*) Estas são medidas bastante aproximadas. O ideal é ter uma balança e pesar todos os ingredientes, mas caso utilize as medidas aproximadas não misture todos os ingredientes de uma só vez. Deixe a água por último e ajuste a sua quantidade de acordo com a consistência desejada da massa conforme fotos que se seguem.

Execução:

Misture todos os ingredientes da mistura listados no quadro acima e sove a massa até que ela fique homogênea, em torno de 10 minutos quando a sova for manual. Faça uma bola como a da foto abaixo.


Transfira a massa para um recipiente, cubra com um pano úmido e deixe dobrar de volume, em torno de uma hora e meia, como na foto abaixo.



Transfira a massa para a banca, pressione sem sova para eliminar os gases e abra a massa como na foto abaixo. Não use muita farinha neste ponto pois a massa deverá "colar" ao ser revolvida na forma de rocambole.

Enrolar a massa na forma de rocambole como na foto abaixo.

Transferir para a forma untada e deixar fermentar coberta por um pano úmido, de preferência no local mais quente da cozinha. Alternativamente deixe fermentar dentro do próprio forno (desligado!) e mantenha uma pequena vasilha com água fervente sem seu interior. Isto manterá um nível mais alto de umidade no forno e a sua temperatura mais elevada.

Quando a massa estiver quase a um dedo da borda da forma, feche-a com a tampa untada e deixe-a fermentar um pouco mais com a tampa fechada. Neste ponto lique o forno a 200 graus Celsius e aguarde uns 10 minutos para que ele atinja a temperatura.

Leve a forma ao forno aquecido e deixar assar por 25 minutos. O tempo de assamento pode variar e talvez tenha que ser ajustado de acordo com o forno. Retire o pão da forma e deixe esfriar sobre uma grade por uns 20 minutos. O resultado final é este da foto abaixo, um pão sem casca.



A forma que utilizei tem dimensões 32cm x 10cm x 10cm e foi comprada em uma loja especializada em produtos de panificação e confeitaria na CEASA de Belo Horizonte.


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